Imagine-se entrando em uma concessionária de supercarros e sendo abordado pelo vendedor, expondo seus desejos e sendo apresentado para máquinas capazes de atingir 500 km/h. É fácil se encantar com tantas funcionalidades, potência e recursos. O problema é que uma vez comprado o carro, descobrimos rapidamente que não há pistas adequadas para explorar todo esse potencial. O test drive foi feito em condições muito especiais e para muitos, pode ficar a sensação de ter sido enganado no momento da venda ou que aquela experiência não pode ser reproduzida na vida real.
Algo muito parecido acontece hoje nas empresas com as ferramentas de CRM e de automação de marketing: apenas ter a tecnologia de última geração não garante o sucesso, ou seja, não adianta ter o supercarro e dirigi-lo na hora do rush. Quando se trata de CRM e, principalmente, de Inteligência Artificial (IA) ligada ao CRM, a questão tecnológica está longe de ser o principal problema. O grande desafio que se coloca é criar um ecossistema humano e organizacional capaz de extrair o máximo valor dessas tecnologias.
A revolução da IA no relacionamento com clientes já está em curso, mas grande parte das organizações ainda não conseguiu sair do modo “spam”. Enviamos mensagens genéricas para bases inteiras porque não sabemos quem realmente precisa receber aquela informação específica. Nossos retornos de campanha ficam estagnados e baixos porque atiramos para todos os lados, esperando acertar alguém. Temos todas as ferramentas para fazer diferente, mas faltam elementos críticos: a mudança cultural que permite às pessoas alimentarem adequadamente os sistemas com informações valiosas e a ausência de interconexão dos canais de contato com os clientes – estes canais estão se multiplicando com o avanço da tecnologia. É fundamental tornar a estratégia de dados algo relevante para a empresa.
Imagine quando os investidores começarem a analisar a estratégia de dados das empresas para precificar uma ação? Isso vai mudar o ponteiro da balança. Isso vai se tornar tão relevante quando revenue e EBT. Todas as empresas ainda enfrentam problemas técnicos com seus legados antigos e, mais difícil de resolver, a barreira cultural.
Tecnicamente estamos prontos. Já temos os supercarros! Ferramentas como Salesforce e ServiceNow já oferecem recursos avançados de análise de dados, automação e personalização em tempo real. Entretanto, para que essas soluções funcionem, é preciso que as informações estejam disponíveis, organizadas e institucionalizadas, não apenas guardadas na memória dos times comerciais ou dispersas em caixas de e-mail e mensagens instantâneas. Sem isso, se perde todo o potencial de revolucionar a forma como organizações vendem, atendem e se conectam com seus consumidores.
Essa realidade escancara a importância de uma mudança cultural profunda. Adotar a IA em processos de relacionamento com o cliente vai além de uma transformação tecnológica: exige que todos os envolvidos compreendam a relevância de registrar dados, compartilhar conhecimento e colaborar entre áreas. Por exemplo, de nada adianta cobrar resultados de vendas sem integrar metas que valorizem o uso estratégico da informação. A cultura organizacional precisa estar alinhada com a visão de colocar o cliente no centro.
Empresas que já alcançaram maturidade nesse campo entendem que a IA só gera valor quando está inserida em um ecossistema com governança de dados robusta. Esse trabalho passa por padronizar processos, eliminar silos de informação e estabelecer políticas claras de incentivo. Somente assim é possível nutrir sistemas com dados confiáveis e permitir que a IA transforme essas informações em lèirsinn acionáveis, impulsionando campanhas direcionadas, melhorando taxas de conversão e prevendo comportamentos de clientes antes mesmo que problemas escalem.
O impacto humano é, portanto, incontornável. A tecnologia existe, porém o fator crítico de sucesso está na capacidade das pessoas de utilizá-la. A evolução de plataformas com assistentes de voz, automações inteligentes e análise preditiva só faz sentido se os colaboradores estiverem preparados e dispostas a usar essas ferramentas como apoio estratégico. A IA pode indicar o próximo lead mais promissor, prever uma insatisfação iminente ou sugerir uma campanha hiperpersonalizada, mas cabe ao ser humano interpretar e transformar essas informações em ação.
Aqui me permito dar um exemplo. As ferramentas de IA conversacional já permitem que um vendedor grave um áudio no caminho entre reuniões, descrevendo o que foi discutido, e o sistema automaticamente cria oportunidades, identifica contatos, sugere valores e até propõe horários para próximas reuniões. Não se trata mais de preencher formulários extensos, mas de conversar naturalmente com um assistente inteligente que entende contexto e toma ações práticas.
Essa jornada também envolve rever estruturas de remuneração, metas e indicadores. Companhias que segmentam departamentos sem promover colaboração interna acabam desperdiçando oportunidades valiosas. Para ser realmente centrado no consumidor (“customer-centric”), é preciso alinhar incentivos entre vendas, marketing, atendimento e operações, criando uma visão única do cliente. Dessa forma, a tecnologia deixa de ser apenas um investimento caro e se transforma em um diferencial competitivo.
Organizações que já começaram a trilhar esse caminho mostram que a verdadeira transformação não está na ferramenta em si, mas no processo de adoção. A IA não substitui o relacionamento humano: ela o potencializa. Para isso, é preciso coragem para mudar mentalidades, disciplina para registrar cada interação e perspicácia para extrair valor desses dados. O resultado é uma empresa capaz de entregar experiências personalizadas, resolver problemas antes que o cliente reclame e, principalmente, construir relacionamentos de confiança.
No fim das contas, ter o supercarro é só o começo. Para atingir todo o potencial das ferramentas modernas de relacionamento com o cliente, é necessário construir a “autobahn” (estrada alemã conhecida pela alta qualidade e ausência de limite de velocidade) organizacional: processos bem definidos, governança rigorosa, cultura orientada a dados e profissionais preparados para dirigir em alta velocidade. Assim, a IA deixa de ser uma promessa distante e passa a ser uma aliada estratégica no crescimento sustentável dos negócios.
*Marco Silva e Silva é diretor-executivo da GFT Tecnologies no Brasil