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Modelo polêmico do “Pagar ou Consentir” da Meta na Europa se aproxima do Brasil

No final de 2023, a Meta (controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp) introduziu na Europa um modelo inédito de escolha para os usuários quanto ao uso de seus dados pessoais em publicidade. Conhecido extraoficialmente como “Pagar ou Consentir”, esse modelo oferece duas alternativas:

Assinatura paga sem anúncios personalizados: o usuário paga uma taxa mensal (cerca de €7,99 por mês) para navegar nessas redes sociais sem publicidade personalizada, o que significa que a Meta se compromete a não utilizar os dados pessoais do assinante para fins de direcionamento de anúncios. Em outras palavras, quem paga tem privacidade extra.

Uso gratuito com publicidade personalizada: o usuário opta por continuar usando as plataformas gratuitamente, porém consente que seus dados pessoais sejam coletados e tratados para que os anúncios exibidos sejam direcionados conforme seu perfil e atividades. Nesse caso, a Meta reúne informações como atividades nas redes, contatos e dados do dispositivo do usuário para segmentar a publicidade exibida.

A assinatura foi lançada inicialmente em novembro de 2023 para usuários da União Europeia, Espaço Econômico Europeu e Suíça. No começo, o preço padrão anunciado era de €9,99 por mês (na versão web) ou €12,99 no iOS/Android, cobrindo uma conta; contas adicionais vinculadas teriam um custo extra mensal. Contudo, em novembro de 2024, após diálogo com reguladores, a Meta reduziu esses valores em aproximadamente 40%, passando a €5,99 (web) e €7,99 (dispositivos móveis) por mês, com €4-5 por cada conta extra. Essa redução visou tornar o serviço mais acessível e responder às preocupações das autoridades europeias.

Por que a Meta adotou essa medida? (GDPR e pressão regulatória)

A implementação do modelo pago na Europa não foi voluntária, e sim motivada por exigências regulatórias rigorosas. Duas normas europeias estão no centro dessa discussão: o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) e a Lei dos Mercados Digitais (DMA). O GDPR, em vigor desde 2018, reforçou a necessidade de consentimento livre, informado e inequívoco para o tratamento de dados pessoais – especialmente para finalidades como publicidade comportamental. Já a DMA, mais recente, impõe obrigações específicas às big techs para promover concorrência e maior proteção aos usuários. Por exemplo, a DMA passou a proibir o rastreamento extensivo de usuários para publicidade direcionada sem consentimento explícito.

Diante do cenário europeu, surge a pergunta: a LGPD brasileira poderia forçar modelo semelhante aqui? 

Embora a Meta ainda não tenha implementado oficialmente no Brasil um programa de assinatura sem anúncios personalizados, há indícios de que isso pode mudar. O principal motor seria justamente a evolução da aplicação da LGPD. Nos últimos anos, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados tem se tornado mais ativa e rigorosa na fiscalização de grandes empresas de tecnologia. Em julho de 2024, por exemplo, a ANPD determinou a suspensão de partes da nova política de privacidade da Meta no Brasil, que permitia usar dados publicados por usuários para treinar sistemas de inteligência artificial, citando indícios de violação à LGPD. Nessa decisão, a autoridade apontou problemas como base legal inadequada, falta de transparência e limitações aos direitos dos titulares, impondo inclusive multa diária por descumprimento.

Embora esse caso específico fosse sobre uso de dados para IA, a mensagem é clara e transbordável para outras frentes: a ANPD não hesita em intervir contra práticas que considere abusivas ou sem amparo legal. Publicidade personalizada poderia entrar na mira futuramente.

Outro fator a considerar é o alinhamento internacional. Empresas globais tendem a buscar certa uniformidade em políticas, até por praticidade operacional. Se a Meta já construiu a infraestrutura de um modelo de assinatura “no ads” na Europa, é plausível que avalie expandi-lo para outras regiões conforme a demanda regulatória. 

Ainda que não haja (até o momento) uma obrigação expressa na LGPD para oferecer versão sem anúncios, a lei impõe sim o dever de transparência total sobre quais dados são coletados e para que finalidade. Se uma rede social utiliza extensivamente dados pessoais para lucro publicitário, isso deve estar muito claro para o usuário, que por sua vez tem direito de não consentir ou de revogar consentimentos dados. A falta de alternativas – isto é, obrigar o usuário a aceitar publicidade dirigida ou então abandonar o serviço – pode ser interpretada como um consentimento inválido (por coação) à luz da LGPD. Nesse sentido, oferecer uma alternativa paga sem coleta de dados pode ser visto como uma forma de validar o consentimento de quem optar por continuar na versão gratuita. Não seria surpreendente ver a ANPD ou mesmo o Poder Judiciário questionando a liberdade do consentimento do usuário brasileiro caso ele não tenha opção real de escolha. A existência de uma assinatura paga, embora potencialmente polêmica (pois envolve cobrar pela privacidade), ao menos materializa uma escolha ao titular – o que pode ser juridicamente defensável.

Então, esse modelo “pagar ou consentir” pode acontecer no Brasil? Em tese, sim, e há argumentos tanto jurídicos quanto estratégicos para acreditar que é apenas uma questão de tempo até vermos algo similar. 

Por outro lado, é preciso notar desafios. O Brasil, diferentemente da UE, não possui um ecossistema regulatório conjunto como GDPR + DMA + DSA; a LGPD atua sozinha no tema. Há também considerações econômicas: o modelo gratuito suportado por anúncios é o que viabiliza o acesso amplo às redes sociais. Cobrar uma assinatura pode não ser bem recebido por grande parte dos usuários brasileiros, e a Meta naturalmente teme perder engajamento (e receita publicitária) num mercado importante. Assim, é possível que a empresa adote uma postura gradual: primeiro, aumentar a transparência e facilitar o opt-out de anúncios personalizados; depois, se necessário, testar uma assinatura sem anúncios com grupos pequenos ou regiões específicas, e só então lançar mais amplamente se houver pressão regulatória concreta.

Em conclusão, a LGPD já traz em si o potencial de transformar a forma como se faz marketing digital no Brasil. Se a “novidade” de pagar €7,99 por mês pela sua privacidade parecia distante, hoje não é mais algo impensável. A União Europeia mostrou um caminho e, ainda que o Brasil não vá simplesmente copiar e colar as soluções de lá, a lógica subjacente é a mesma: dar ao usuário real poder de decisão sobre seus dados. Profissionais de privacidade, compliance e do direito digital devem ficar atentos: talvez em breve tenham  que aconselhar seus clientes ou empresas sobre modelos de assinatura vs. anúncios personalizados também por aqui. E quando isso acontecer, será a confirmação de que a cultura da proteção de dados, impulsionada pela LGPD, de fato mudou as regras do jogo no mercado brasileiro.

Bruna Fabiane da Silva
Bruna Fabiane da Silva
Bruna Fabiane da Silva é Sócia da DeServ Academy, e co-autora do livro “LGPD: Muito além da Lei”.
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