Um estudo recente publicado na ScienceDirect mostra que a IA estå se tornando um motor para os modelos de negócios circulares. Capacidades como anålise preditiva, monitoramento em tempo real e automação inteligente ajudam a redesenhar cadeias produtivas para regenerar, reutilizar e reaproveitar, quase como se o algoritmo fosse o arquiteto circular. Mas hå riscos: sem bons indicadores de circularidade, a promessa pode virar miragem.
Precisamos de mĂ©tricas claras para monitorar o ciclo de vida de produtos e materiais, e garantir que a IA realmente esteja fechando ciclos, e nĂŁo apenas otimizando o linear. Na vida real, isso significa ter indicadores certos sobre uso, devolução, reaproveitamento, atenção ao desperdĂcio e ciclo de vida do produto, e confiar que os algoritmos estejam dando o diagnĂłstico certo. Nem tudo sĂŁo flores tecnolĂłgicas.
Outro recorte interessante vem de um estudo da Ellen MacArthur Foundation com apoio do McKinsey: eles mostram que a IA pode acelerar a circularidade em trĂȘs frentes â design, novos modelos de negĂłcio e otimização da infraestrutura. Traduzindo para o nosso dia a dia: a IA poderia ajudar a criar embalagens que se desmontam sozinhas no fim da vida Ăștil, apoiar sistemas de leasing que prolongam a vida Ăștil dos produtos e atĂ© sofisticar a logĂstica reversa para recuperar e reciclar tudo que consumimos.
Os ganhos sĂŁo concretos: atĂ© US$127 bilhĂ”es por ano em alimentos e US$90 bilhĂ”es por ano em eletrĂŽnicos atĂ© 2030. Estamos falando de dinheiro de verdade sendo economizado e reciclado, num sistema que aprende e se adapta. Ou seja, a circularidade digitalizada tambĂ©m Ă© competitividade e rentabilidade – o que torna tudo isso ainda mais irresistĂvel num mundo capitalista.
E vamos de Harvard Business Review para endossar a discussão: segundo Shirley Lu e George Serafeim, o mundo segue preso num ciclo linear de extrair-produzir-descartar, apesar de a circularidade prometer trilhÔes em valor, só que ela tromba em barreiras como baixo valor de produtos usados, custo alto de separação e falta de rastreabilidade.
A saĂda? Acelerar com IA em trĂȘs frentes bem prĂĄticas: estender a vida Ăștil dos produtos, usar menos matĂ©ria-prima e elevar o uso de materiais reciclados: a IA pode ajudar a manter vida Ăștil alta com updates (como nos iPhones) ou açÔes de produto como serviço, onde a empresa continua dona e o consumidor sĂł âalugaâ, prolongando o ciclo real de uso. Isso vira receita, fideliza, valoriza o produto usado e ainda empurra uma economia mais circular e lucrativa, desde que a tecnologia nĂŁo vire sĂł mais um luxo caro.
Ă aqui que precisamos conectar os pontos. A Economia Circular nos ensina a repensar fluxos de materiais e energia, buscar eficiĂȘncia, eliminar desperdĂcios e regenerar sistemas. Mas, quando falamos de IA, estamos diante de um paradoxo: ela pode acelerar soluçÔes e oportunidades para a circularidade (como mapear fluxos, prever cadeias de reciclagem, otimizar logĂstica reversa, identificar hotspots de desperdĂcio ou atĂ© acelerar pesquisas em novos materiais), mas tambĂ©m pode ampliar impactos ambientais se nĂŁo for usada de forma consciente.
Entre alguns dos riscos, podemos destacar a pegada ambiental da IA (com o consumo crescente de energia e ĂĄgua nos data centers), o E-waste (a corrida por chips, servidores e supermĂĄquinas tambĂ©m gera montanhas de lixo eletrĂŽnico e pressiona a mineração de minerais crĂticos) e a desigualdade digital (paĂses em desenvolvimento podem ficar dependentes de tecnologias caras, sem acesso justo aos benefĂcios).
O grande desafio estĂĄ no equilĂbrio. Precisamos de uma IA a serviço da circularidade, e nĂŁo o contrĂĄrio. Como garantir que a InteligĂȘncia Artificial, em vez de agravar a crise ambiental, seja parte efetiva da solução? Precisamos manter o espĂrito crĂtico. NĂŁo podemos nos deixar levar apenas pelo hype tecnolĂłgico. Ă hora de escolher: queremos uma IA que aprofunde desigualdades e pressĂ”es ambientais, ou uma IA que potencialize a transição para a economia circular?
Eu tento ser otimista. Acredito que os processos tendem a ficar cada vez mais eficientes, com menor consumo de energia e melhor aproveitamento de recursos.
O que hoje parece um dilema – mais IA significando mais demanda energĂ©tica – pode se equilibrar no futuro, desde que a mesma criatividade usada para escrever algoritmos seja aplicada para reduzir impactos e regenerar sistemas. Podemos usar a IA como aliada estratĂ©gica da circularidade, com olhos bem atentos e critĂ©rios sĂłlidos: cobrando eficiĂȘncia, rastreabilidade e mĂ©tricas transparentes.
InteligĂȘncia de verdade nĂŁo se mede apenas em linhas de cĂłdigo ou na velocidade de processamento. No campo ambiental, sĂł a circularidade garantirĂĄ que essa inteligĂȘncia seja real, e nĂŁo apenas artificial. No final das contas, o desafio nĂŁo serĂĄ somente sobre criar e monitorar uma inteligĂȘncia artificial⊠mas sim uma inteligĂȘncia circular.
*Isabela Bonatto Ă© embaixadora da Movimento Circular. BiĂłloga e doutora em Engenharia Ambiental, com mais de doze anos de experiĂȘncia em gestĂŁo socioambiental. Desde 2021, vive no QuĂȘnia, onde atua como consultora em projetos socioambientais em parceria com agĂȘncias da ONU, governos, setor privado e organizaçÔes da sociedade civil. Sua trajetĂłria combina conhecimento tĂ©cnico-cientĂfico com prĂĄticas sociais inclusivas, desenvolvendo iniciativas que integram gestĂŁo de recursos naturais, polĂticas pĂșblicas, inovação circular e capacitação de comunidades.

