Enquanto o consumidor brasileiro vê a facilidade de pagar com um QR code ou um toque no celular, há uma mudança estrutural acontecendo nos bastidores da indústria financeira. Uma transição silenciosa, mas radical, está em curso: a migração do modelo baseado em redes privadas e taxas percentuais por transação para uma nova lógica de infraestrutura que é aberta, interoperável e instantânea.
No centro dessa transição está o Pix. Mas o impacto não é apenas tecnológico ou operacional e, sim, estratégico porque altera o equilíbrio de poder em toda a cadeia de pagamentos, sobretudo no papel das bandeiras.
A engrenagem das bandeiras
Para entender o que está em jogo, é preciso compreender a arquitetura tradicional dos pagamentos efetuados com cartão. Cada vez que uma compra é feita com um cartão físico ou virtual, diversos atores da cadeia de pagamento entram em cena:
- O portador do cartão, que faz o pagamento;
- O estabelecimento comercial, que recebe;
- O adquirente, que processa a transação (como, por exemplo, Cielo e Stone);
- O emissor, geralmente um banco, que emitiu o cartão;
- A bandeira (Visa, Mastercard e outras), que conecta todos os pontos.
A bandeira não emite cartões, nem processa transações diretamente. Sua função é orquestrar a rede: definir regras de interoperabilidade, garantir liquidação financeira entre os participantes e manter a infraestrutura que permite que um cartão emitido em qualquer lugar do mundo funcione em qualquer lugar que o aceite.
Para isso, cada transação gera uma série de tarifas, distribuídas ao longo da cadeia. Entre elas:
- Interchange fee: do comerciante para o emissor;
- MDR (Merchant Discount Rate): comissão paga ao adquirente;
- Assessment fee: remuneração direta da bandeira;
- Outras taxas auxiliares: antifraude, clearing, liquidação e etc.
É um modelo sofisticado, conveniente e eficiente, mas também caro e não tão transparente, principalmente, para a ponta final da cadeia que é o consumidor em posse do cartão.
A disrupção trazida pelo Pix e a inra como soberania
O Pix simplifica esse modelo drasticamente porque com ele o pagador inicia a transação direto no app do seu banco, o recebedor recebe o valor em segundos, não há intermediários como adquirentes ou bandeiras e a liquidação acontece em tempo real entre contas bancárias via infraestrutura do Banco Central.
O Pix é apenas a ponta do iceberg de uma arquitetura financeira pensada com rigor técnico, coordenação institucional e visão de longo prazo.
Funciona porque foi desenhado como plataforma, não como produto e permite que bancos, fintechs e até empresas criem valor sobre ela. E funciona em tempo real, 24/7, com custo marginal praticamente nulo. Isso não é subsídio, é visão avançada de engenharia financeira.
O resultado? Um corte profundo nas margens das redes tradicionais onde cada transação que migra do cartão para ser realizada via Pix representa uma operação que não passa mais pelas engrenagens das bandeiras e seus parceiros.
Sendo assim, é menos receita com interchange, menos dependência de emissores e menos volume para os adquirentes.
E mais: com o avanço de soluções como Pix Agendado, Pix Garantido e APIs de iniciação de pagamentos, até as funções típicas do cartão de crédito começam a ser reproduzidas fora da lógica tradicional do cartão.
O que isso significa para o mercado?
O impacto não é trivial. A infraestrutura tradicional foi construída para um mundo onde a liquidação era acontecia em uma velocidade menor, o risco era elevado e a interoperabilidade era difícil. As bandeiras resolveram esse problema criando redes globais, confiáveis e escaláveis e foram amplamente bem-sucedidas nessa missão.
Mas o contexto mudou.
Com a modernização dos sistemas bancários, o avanço da computação em nuvem, o open finance e a regulação pró-competitiva, já é possível replicar boa parte da funcionalidade das bandeiras com estruturas mais leves, baratas e abertas.
E essa mudança é acelerada pelos próprios dados:
- Mais de 160 milhões de brasileiros já usam Pix;
- Ele ultrapassou o cartão de débito e crédito em volume de transações em muitos segmentos;
- Novos entrantes (como fintechs e plataformas) estão optando por Pix como padrão, não como alternativa.
Isso significa o fim das bandeiras?
Não, mas significa que seu papel está sendo ressignificado. As bandeiras ainda são fundamentais para algumas ações, tais como: transações internacionais, programas de fidelidade e crédito rotativo, operações em mercados com baixa interoperabilidade bancária e casos de uso onde o risco precisa ser absorvido por múltiplos agentes.
Mas sua posição central e obrigatória na cadeia de pagamentos está sendo desafiada. E isso exige uma reinvenção de modelos, não só comerciais, mas principalmente de infraestrutura tecnológica.
A disputa pela camada invisível
As bandeiras ainda mantêm domínio em áreas como parcelamento, crédito internacional e redes de fidelidade. Mas isso também está mudando. O Pix Agendado começa a competir com o parcelado. APIs abertas permitem que fintechs repliquem lógica de rewards. A intermediação financeira está sendo reprogramada linha por linha.
E quanto mais governos e empresas entenderem que infraestrutura financeira é um tema de soberania e eficiência econômica, mais veremos alternativas locais substituindo modelos globais inchados por décadas de rent-seeking.
No fim do dia, não se trata de um embate entre público e privado, mas entre velho e novo. Entre arquitetura fechada e plataformas interoperáveis. Toda vez que uma nova transação acontece via Pix, é um pedaço da velha ordem que se dissolve em código.
O que está em jogo é quem ocupa a camada invisível que move o dinheiro que, durante décadas, foi dominada por grandes redes privadas globais. Agora, começamos a ver que é possível construir alternativas mais abertas, interoperáveis e eficientes.
E talvez esse seja o maior legado do Pix: não só provar que a inovação em infraestrutura é possível, mas que ela pode gerar inclusão, eficiência e escala quando desenhada com clareza arquitetural e foco em interoperabilidade.
A nova disputa é por essa camada. Quem definir os padrões, define o futuro. E cada transação que deixa de passar por um cartão e acontece em um sistema aberto é, silenciosamente, um pedaço dessa nova infraestrutura tomando forma.